As últimas cartadas de Haddad para tentar virar o difícil jogo contra Bolsonaro
A cena dá um bom retrato do que foi até aqui o segundo turno para Haddad. Muito pouco da estratégia montada por ele para e etapa final da eleição conseguiu de fato sair do papel.
Na calçada da sede do Partido dos Trabalhadores (PT) em Brasília, uma pequena mesa foi montada na qual os simpatizantes do partido podem recolher adesivos ou folders da candidatura presidencial de Fernando Haddad. Num final de manhã desta semana, não eram muitos os voluntários que paravam para recolher material. Passando por ali, um transeunte gritou, sem interromper o passo: "É Bolsonaro!"
A cena dá um bom retrato do que foi até aqui o segundo turno para Haddad. Muito pouco da estratégia montada por ele para e etapa final da eleição conseguiu de fato sair do papel e seu oponente, Jair Bolsonaro, mantém uma confortável vantagem nas pesquisas de opinião. De acordo com os últimos levantamentos, são mais de 19 milhões de votos entre um e outro. Sem sinais de reação e atribuindo a força de Bolsonaro a uma "campanha suja" promovida através do WhatsApp, o comitê de Haddad lançou mão de uma última cartada nesta quinta-feira: decidiu partir para uma ofensiva judicial para contestar a candidatura do rival. Para os petistas, trata-se de denunciar uma operação montada para "fraudar" as eleições por meio de uma estratégia de difamação de Haddad através das redes sociais. Para os aliados de Bolsonaro, a ação é um ato de "desespero" de quem está diante de uma derrota iminente.
A decisão de pedir a cassação de Bolsonaro ocorreu depois da publicação, pelo jornal Folha de S.Paulo, de um esquema de disparos massivos de mensagens no WhatsApp financiado por empresários simpáticos ao capitão reformado do Exército. Caso confirmada a acusação, trata-se de uma infração às leis brasileiras, que proíbem doações eleitorais de empresas. Também poderia configurar caixa 2 de campanha, já que as ações não foram declaradas na prestação de contas feita no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
"Se houver simetria concorrencial, paridade de armas, nós vamos vencer essa eleição no voto. Nós temos o melhor programa e o melhor candidato", afirma Marco Aurélio de Carvalho, membro do núcleo jurídico do QG petista. "Para isso, nós temos que combater essa indústria formada pelo candidato adversário para veicular notícias mentirosas, criminosas e, inclusive, preocupantes para a democracia no Brasil", acrescenta.
Neste momento, o processo movido pelo PT contra Bolsonaro cria um fato político, mas não deve ter efeitos práticos no curto prazo. Segundo um ex-ministro do TSE ouvido pelo EL PAÍS, não há a menor possibilidade de que a representação seja analisada antes do segundo turno. O processo só seria julgado em meados do próximo ano, com um novo presidente já eleito. E, se mantidos os patamares das mais recentes sondagens eleitorais, tudo indica que o novo mandatário será Bolsonaro.
Isolamento e rejeição
Qualquer que seja o motivo da estagnação de Haddad, o fato é que a distância para alcançar o adversário representa um desafio sem precedentes na história da democracia brasileira. Uma situação agravada pelo isolamento a que o candidato do PT foi submetido logo no início do segundo turno —e que frustrou suas pretensões de construir uma ampla frente democrática contra o autoritarismo de Bolsonaro. Ciro Gomes (PDT), que ficou em terceiro lugar na disputa de 7 de outubro, declarou apenas um "apoio crítico" a Haddad e se negou a se engajar diretamente na campanha do petista. O fissura ficou evidente nos últimos dias: aos gritos de "petistas babacas", o irmão de Ciro, o senador eleito pelo Ceará Cid Gomes, disse em um evento em Fortaleza que o PT precisa fazer uma autocrítica. Sem ela, continuou o cearense, a derrota nas urnas seria não só inevitável como merecida.
"O histórico do PT não ajuda na ampliação dessa frente democrática", avalia ao EL PAÍS Carlos Siqueira, presidente nacional do PSB. "A dificuldade decorre de uma visão exclusivista do PT". Siqueira se refere às articulações do ex-presidente Lula (preso há seis meses em Curitiba) para evitar que os socialistas se aliassem a Ciro Gomes antes do início do período eleitoral, o que teria dado ao pedetista musculatura e recursos que possivelmente o tornariam um candidato mais competitivo. Ao dar o troco em Lula, os Ferreira Gomes praticamente sepultaram a frente democrática que Haddad planejava construir.
O estrago foi grande. O racha com aliados históricos tornou ainda mais difícil qualquer diálogo com as forças políticas de centro e de centro-direita no país que rejeitam Bolsonaro. Haddad se reuniu na semana passada em Brasília com o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, algoz de lideranças petistas de alto quilate no processo do Mensalão. Ouviu de Barbosa a sugestão de que era necessário estabelecer um diálogo com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quadro histórico do PSDB que já repudiou a retórica violenta e extremista do capitão reformado do Exército. Também disse que Haddad deveria promover alterações no programa de governo do PT e trazê-lo "mais ao centro", mas não deu nenhum indicativo de que estava disposto a fazer um apoio público. Os acenos a FHC caminham para ter um destino não muito diferente: pese a que tanto o ex-presidente da República quanto o presidenciável petista digam que entre ambos "existe uma porta" que pode ser aberta, nenhum dos dois parece disposto a dar o primeiro passo. Enquanto esperam para ver quem bate primeiro, a porta segue fechada.
"Ele só mudou o cabelo"
O presidenciável de fato tentou realizar esse movimento ao centro: logo no início do segundo turno, descartou uma das propostas do plano de governo original do PT, a da convocação de uma Assembleia Nacional exclusiva para a revisão da Constituição. Também incorporou a promessa de criação de uma guarda nacional, nos moldes da defendida pelo candidato derrotado do PSDB à Presidência, Geraldo Alckmin. Nos últimos dias, conseguiu ainda o apoio de mais de 1.000 juristas, que assinaram um manifesto no qual dizem que, face ao histórico de louvores à ditadura militar brasileira por parte de Bolsonaro, só o presidenciável do PT tem condições de garantir o regime democrático no Brasil. Teve ainda um encontro com líderes evangélicos mais progressistas, para tentar recuperar um pouco a ampla vantagem que seu oponente mantém entre os neopentecostais.
Ocorre que essa operação de conferir à candidatura autonomia tem sido lenta e, até o momento, pouco efetiva. Não por acaso, Bolsonaro tem administrado sua confortável vantagem reafirmando a ideia de que Haddad não passa de um "fantoche" do ex-presidente. "Insistir na tese 'Haddad é Lula e Lula é Haddad' preparou o terreno para que a narrativa do preposto, daquele que seria um governante indireto, ganhasse ímpeto e força. Isso fez com que a rejeição do Haddad subisse e a do Bolsonaro diminuísse", afirma Marco Antonio Teixeira, professor da Fundação Getulio Vargas.
Um ex-ministro do governo Dilma Rousseff vai na mesma linha. De acordo com ele, Haddad ainda não conseguiu dar à campanha uma identidade própria, desassociada da imagem de Lula e do PT, algo considerado fundamental para conseguir o apoio de setores da sociedade divorciados do petismo. "O Haddad não passa o que ele é. A única novidade que apresentou até agora foi o corte de cabelo. Para lutar contra um fenômeno como o Bolsonaro, isso é pouco", diz. "Ele não tem uma identidade própria. Não é o Haddad educador, o candidato isso ou aquilo; [não é] o Haddad que vai dar um cavalo de pau na parte fiscal, que vai controlar [as contas públicas]".
Com o aparente naufrágio da frente democrática, pelo menos nos moldes de uma coalizão ampla com outras forças políticas, resta a Haddad centrar fogo onde o PT garantiu suas últimas vitórias nas urnas. O eleitorado mais pobre, sobretudo o do Nordeste. No último Ibope, Haddad só supera o capitão reformado entre a população com renda familiar de até um salário mínimo. E, por região, o petista vence Bolsonaro apenas no Nordeste. Mesmo lá há obstáculos: nas capitais nordestinas, o comitê da campanha de Haddad identificou um avanço consistente do voto bolsonarista.
Justamente por isso, o PT tem utilizado o histórico de declarações de Bolsonaro contra programas sociais, principalmente o Bolsa Família, para tentar recuperar o espaço perdido para o rival no eleitorado de baixa renda. Também tem explorado as falas do vice do candidato do PSL, o general da reserva Hamilton Mourão, contra o 13º salário e o adicional de férias. "Queremos mostrar aos trabalhadores que votar no Bolsonaro é votar contra si mesmo", diz um dirigente petista. Por fim, o último programa eleitoral da sigla trouxe um duro depoimento de uma vítima de tortura durante a ditadura militar, para lembrar que o candidato do PSL defendeu abertamente o regime de repressão política que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985.
As peças trazem uma narrativa forte, inclusive com cenas do filme Batismo de Sangue que reproduzem sessões de tortura promovidas pelo aparato da ditadura. Mas, no pleito mais polarizado que o Brasil já viveu desde a redemocratização, e que não guarda quase nenhuma semelhança com as últimas disputas presidenciais, não há garantias de que elas possam tirar a candidatura de Haddad das cordas.