11/03/2019
Bolsonaro: proibidão para menores e maiores
Bolsonaro é típico personagem da pornochanchada brasileira, o cinema popular dos anos 1970-80, não por coincidência a época de um Brasil idealizado pelo capitão-presidente nos seus micro-sermões nostálgicos e patrióticos.
Não precisamos recorrer a seriados chiques e distópicos, como abestalhadamente já fez este cronista. Nem citar os Black Mirrors ou South Parks da vida. O buraco, a cratera, o rombo simbólico é mais embaixo. Bolsonaro é típico personagem da pornochanchada brasileira, o cinema popular dos anos 1970-80, não por coincidência a época de um Brasil idealizado pelo capitão-presidente nos seus micro-sermões nostálgicos e patrióticos.

Machão caricato, boçal -usou o auxílio-moradia “pra comer gente”-, homofóbico, eterno espírito de baixo clero, cristão de araque etc. Caberia em vários filmes do gênero. Inclusive no clássico Histórias que nossas babás não contavam (1979), dirigido por Oswaldo de Oliveira, uma paródia de Branca de Neve e os Sete Anões. Bolsonaro faria o caçador. Óbvio que prefiro o mitológico Costinha no papel. E Deus salve, para todo sempre, a Adele Fátima, magnífica atuação.

Perigoso para menores, sob pena de um Brasil sem futuro, o moralista militar da reserva é igualmente proibidão para maiores de 60 anos. Imagina se depender da bondade da turma de Paulo Guedes (todo-poderoso ministro da Economia) e se for pobre, como a massa maior do país. Vixe. Pode ter que escapar fedendo com 400 mirréis para remediar o irremediável custo das receitas e caldos de uma velhice sem sustança.

O capitão da reserva, com a sua denúncia moral rasa e o fastio para governar, se enquadra em outra característica atribuída ao ciclo da pornochanchada: distrair os fanáticos eleitores para evitar questões graves da realidade do país. Nada como um carnavalesco post pornô para desviar dos escândalos do Queiroz e do laranjal do partido que o conduziu, generosamente com dinheiro público, ao Palácio do Planalto.

Ao situar o presidente como personagem elementar de tal safra cinematográfica, longe desse escriba a intenção de diminuir a importância do movimento que começou no Rio de Janeiro e teve a Boca do Lixo paulistana como sua Hollywood. Sou fã e confesso em público, sem vergonha, a minha devoção. É que a pornochanchada é quase o lugar (óbvio) de fala do Bolsonaro, entende? Sabe a última do capitão? A antologia completa está inteira nesse ciclo do cinema tupiniquim, incluindo no pacote a paranoia diante dos “comunistas”, temática presente nas películas dos anos 1970.

Para entender o Brasil deste período, recomendo, além de rebobinar as velhas fitas de VHS no inconsciente, assistir ao documentário Histórias que nosso cinema (não) contava (2018), dirigido por Fernanda Pessoa. O filmaço passou por algumas poucas salas no Brasil (que pena, merecia cartaz permanente pelo seu caráter pedagógico, paulofreiriano, talvez) e é fácil de encontrar nos serviços de streaming.

Cinema é montagem. E a diretora, na companhia de Luiz Cruz, o montador do longa-metragem, sabem disso. Pesquisa profunda qual a garganta daquele outro clássico norte-americano (Deep Throat, 1972), o filme não é carente de voz em OFF ou de entrevistados para narrar um mundo de coisas. Bastou a sabedoria de editar falas & falocentrismos, cenas e obscenidades que dão conta de um país que já mudou muito, mas foi buscar no reino da pornochanchada, nas eleições do ano passado, o seu comandante em marcha-ré.

Pessoa e Cruz enfileiram 27 longas para contar sobre o cinemão do período da Ditadura Militar. E agora José? (Tortura do Sexo), dirigido por Ody Fraga é exemplar, com cenas que reúnem os castigos dos porões e um possível erotismo de dar um nó no cabeção do doutor Freud. Doideiras que só a pornochanchada, não o Cinema Novo ou cult decifravam.

Tem o Silvio de Abreu com Árvore dos Sexos (1977) e Cada Um Dá o Que Tem (1975), fita que dirige com Adriano Stuart e John Herbert. Reparo na vida e obra de Sílvio de Abreu. Tanta tv, tanto cinema, tanto teatro... Em todas as funções possíveis: roteirista, ator, supervisor de núcleos dramáticos etc etc. Sério candidato a um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. Repare na biografia desse homem. Além de tudo, dirigiu o maior elogio ao freudianismo de todos os tempo, Mulher Objeto (1981), com Helena Ramos (palmas eternas) e Nuno Leal Maia —sim, Nuno fabuloso também em O bem dotado, o homem de Itu (direção José Miziara, 1978).

O filme da Pessoa é um delírio sem fim para a minha geração, mas creio que seja mais importante ainda para quem desconhece o ciclo da pornochanchada e agora se vê desgovernado pelo capitão-presidente. Se senti falta de um Walter Hugo Khouri, nosso Antonioni da Móoca, matei a saudade da Sandra Bréa (1952-2000), tem lindeza maior no cosmo? Senti falta pelo universo que sugere, mas é polêmico situar o Khouri neste ciclo, talvez não lhe pertença.

Em compensação, a ficção científica A Super Fêmea (Anibal Massaini Neto, 1973), com Vera Fischer, é um nirvana. Que documentário rico sobre um período idem. Pena que, na vida real, só nos sobrou este caricato capitão-presidente enquanto obscuro objeto do resquício autoritário. “Noooossa!”, exclamaria o grande Costinha, com sua imoral bocarra. “Tás brincando?!”, completaria a mesma humorística figura.







 

Fonte: Xico Sá - El País Brasil
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