MP 1045: a nova (e sorrateira) “reforma” trabalhista
Avança na Câmara proposta que, recheada de “jabutis”, visa permitir a empresas contratar até 40% de seus trabalhadores sob modelos precários e sem direitos. Objetivo: corte brutal nos custos do trabalho para ampliar os lucros do capital.
Em pauta na Câmara dos Deputados, a Medida Provisória (MP) 1045, editada pelo governo federal no final de abril, autorizou a suspensão de contratos e redução da jornada de trabalho (com redução salarial) como forma de tentar ajudar as empresas durante a pandemia, e pode ser renovada. Mas ela está cheia de “jabutis” (como são chamadas as emendas estranhas ao tema principal do projeto, inseridos no relatório final do deputado Christino Áureo, do PP-RJ), que transformam a MP 1045 em uma minirreforma trabalhista, ampliando a precarização do trabalho no Brasil.
Antes de entrarmos nos detalhamentos e especificidades técnicas da nova rodada de reforma trabalhista que poderá ser aprovada no Congresso nos próximos dias via MP 1045, é importante contextualizarmos o cenário com uma síntese da dinâmica econômica que assenta não só esse, mas uma série de outros ataques à classe trabalhadora em prol da recomposição das taxas de lucro do capital que tenta se desvencilhar da crise econômica por ele mesmo criada por intermédio da intensificação da exploração da classe trabalhadora.
Com isso, iremos demonstrar, também, a falácia dos defensores da MP 1045 que, pela enésima vez em um curto intervalo de tempo, afirmam que a redução de direitos visa gerar mais empregos. Por fim, vamos detalhar os aspectos mais ofensivos da MP 1045 e que nos permitem caracterizá-la como uma nova etapa da reforma trabalhista.
1. Contextualização da austeridade e dos ataques aos direitos da classe trabalhadora
A economia brasileira está sendo submetida, principalmente a partir de 2015, a um conjunto de duras políticas de austeridade fiscal e de redução da proteção trabalhista. Os resultados, ao contrário do prometido pelos seus defensores, foi a segunda maior recessão da nossa história e, posteriormente, a mais lenta recuperação já registrada. Este cenário gerou impactos sociais profundos: taxas recordes de desemprego; aumento da desigualdade social e empobrecimento de parcela significativa da população.
Os resultados socialmente perversos da austeridade fiscal possuem uma explicação razoavelmente simples: em meio à uma crise que conjuga desemprego elevado com redução dos salários, há uma forte e óbvia queda da demanda das famílias por bens e serviços, logo as empresas acumulam estoques, reduzem investimentos e ampliam as demissões. Se o Estado também cortar os gastos que seriam, por definição, direcionados para as famílias e empresas, a economia entra em espiral recessiva.
Especificamente sobre o mundo do trabalho, aspecto que nos interessa particularmente neste texto, estamos presenciando uma destruição estrutural que vai muito além do revelado pelos índices de desemprego.
O país registra, aproximadamente, 14,8 milhões de pessoas desempregadas. A título de comparação, em 2014, ano que antecedeu a imposição das políticas de austeridade fiscal, o desemprego atingia 6,4 milhões de trabalhadores. Um dado mais fiel à realidade é a taxa de subutilização, que aponta que faltavam trabalhos para 32,9 milhões de pessoas no Brasil no trimestre encerrado em maio. O indicador inclui não só a taxa de desocupação, mas também a taxa de subocupação por insuficiência de horas e as pessoas que não estão em busca de emprego, mas que estariam disponíveis para trabalhar.
Além da falta de empregos para mais de 30 milhões de pessoas, as que conseguem algum tipo de trabalho estão em postos cada vez mais precários, informais e sem a devida proteção trabalhista e previdenciária. Segundo o IBGE, entre os 86,7 milhões de pessoas ocupadas no Brasil, 34,7 milhões são trabalhadores sem carteira assinada, pessoas que trabalham por conta própria sem CNPJ e aqueles que trabalham auxiliando a família.
O gráfico abaixo resume o cenário de destruição: a linha verde é a taxa de desemprego; que está acomodada em patamares elevados desde o início da virada a austeridade, subindo ainda mais durante a pandemia; a linha azul indica que o número de pessoas que trabalham com carteira assinada está caindo estruturalmente no país; por fim, a linha vermelha consiste na soma de pessoas que trabalham sem carteira e por conta própria, deixando claro que os poucos postos criados desde o início da crise estão concentrados em setores, no geral, precários.
Diante deste cenário de destruição e desespero do povo, os defensores da MP 1045 prometem que a criação de modalidades de “empregos” sem praticamente nenhuma proteção trabalhista e salários de fome é a saída para a crise. Vale lembrarmos que promessas semelhantes foram feitas nos últimos anos. Em 2015, prometeram que a austeridade fiscal geraria empregos. Em 2016 dobraram a dose do veneno com o teto de gastos. Em 2017 veio a reforma trabalhista. Porém, como os dados acima revelam, após essas reformas tudo piorou: mais desemprego e precarização do mundo do trabalho.
Diante dos elementos que comprovam inquestionavelmente que a austeridade e ataques aos direitos trabalhistas aprofundaram a crise que prometiam resolver, a questão que se coloca é: por que então o capital insiste em novas rodadas de austeridade e redução de direitos trabalhistas? Será que eles não compreendem que mais cortes de gastos públicos e redução de direitos e salários não irão tirar o país da crise?
A resposta é simples: a austeridade fiscal e o ataque aos direitos trabalhistas cumprem função central no processo de acumulação capitalista e não possuem, como alegam seus advogados, a intenção de gerar empregos, muito pelo contrário.
As políticas de austeridade fiscal tinham como fim não a resolução do problema do desemprego, mas sim buscavam o rebaixamento brutal do custo do trabalho visando a recomposição das taxas de lucro do capital. Como nos ensinou tanto Marx quanto Michal Kalecki, o desemprego muda a correlação de forças entre trabalhadores e patrões exercendo um efeito disciplinador sobre a classe trabalhadora. Dada esta alteração, os trabalhadores passam a aceitar salários mais baixos e piores condições laborais. Por conta disso, os empresários, que só enxergam os salários como custo, consideram esse rebaixamento a solução para a retomada da lucratividade em momentos de crise. É exatamente este o contexto que se dá a proposta de reforma trabalhista inserida, inconstitucionalmente, na MP 1045.
2. Aspectos gerais da reforma trabalhista inserida na MP 1045
A MP 1045, em sua versão original, tratava apenas da criação do chamado Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEM). A medida visava permitir que as empresas pudessem suspender contratos de trabalho e reduzir proporcionalmente jornadas e salários em 25%, 50% ou 70% dos salários e das jornadas dos funcionários. Para complementar parcialmente a renda do trabalho reduzida, o governo criou o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação de Emprego e da Renda, o BEm, para os trabalhadores impactados. Só este aspecto já implica em uma medida inadequada que, apesar de apoiar fortemente os empresários, não protege a integralidade da renda do trabalhador que ingressar no programa. Como a base de cálculo do BEm é o seguro desemprego, e não o salário do trabalhador, o programa acaba implicando em forte queda na renda, podendo chegar, em alguns casos, a 50% de redução salarial.
Contudo, a MP piorou exponencialmente durante a tramitação no Congresso a partir da apresentação do parecer do relator que inseriu uma reforma trabalhista dentro da matéria, recuperando a essência da antiga e ofensiva carteira verde e amarela.
Vale mencionarmos que este tipo de estratégia é inconstitucional: não se pode inserir matérias estranhas em propostas legislativas visando burlar o devido processo legislativo conforme entendimento do STF e, no caso específico da MP 1045, confirmado por notas do Ministério Público do Trabalho e da Consultoria Legislativa da própria Câmara dos Deputados. Trata-se de uma agressão ao debate democrático.
Sobre a reforma trabalhista inclusa na MP 1045 pelo relator, o deputado Christino Aureo, embora o objetivo declarado das adições seja aparentemente relevante, ou seja, a geração de empregos para jovens e pessoas com dificuldade de inserção no mercado de trabalho, na prática se trata da criação de programas que promovem a intensificação da exploração da classe trabalhadora, inclusive subvertendo o direito a trabalho assegurado como direito social pela Constituição.
Na medida o relator criou o programa de “estímulo ao primeiro emprego” (Priore) e um regime de “qualificação profissional para trabalhadores do setor produtivo” (Requip), custeados com 30% dos recursos do Sistema S.
No Regime Especial de Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip) foi criado um modelo sem vínculo empregatício firmado por meio de termo de compromisso com duração de 3 anos para pessoas de 18 a 29 anos; pessoas sem vínculo registrado em Carteira de Trabalho há mais de 2 anos e pessoas de baixa renda oriundas de programas federais de transferência de renda. Trata-se de prestação precária de serviços ou trabalho eventual disfarçada de formação profissional para afastar a caracterização de relação de trabalho.
Para os trabalhadores explorados pelo Requip, será assegurado o pagamento de uma bolsa de até cerca de R$ 220 mensais, paga pela União somada a uma Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ) paga pela empresa e que terá o mesmo valor, ou seja, a soma dos dois benefícios será próxima de míseros R$ 440 mensais. Dessa forma, um trabalhador contratado pelo Requip para trabalhar 22h semanais (meio turno) receberá apenas cerca de 40% do salário-mínimo, e não terá direito a 13º salário, férias, FGTS e nenhum direito trabalhista. A empresa ainda poderá deduzir o pagamento da bolsa da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Além disso, não haverá férias, e sim um recesso de 30 dias não remunerado pela empresa. Trata-se de uma modalidade de trabalho que significa um retrocesso inimaginável nos direitos trabalhistas. As empresas poderão alocar até 15% da sua força de trabalho neste modelo.
Já o segundo modelo criado é o Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore). Um tipo precário de contratação de trabalho para pessoas de 18 a 29 anos e pessoas com idade igual ou superior a 55 anos, sem vínculo formal por mais de 12 meses.
Além de afastar o direito à indenização de 50% dos salários devidos, no caso de demissão do emprego antes do prazo de vigência estipulado, reduz a multa do FGTS de 40% para 20%. As alíquotas do FGTS também são reduzidas de 8% para até 2%. As empresas poderão contratar até 25% da sua força de trabalho nesta modalidade.
Somando os dois programas descritos acima, as empresas poderão alocar até 40% da sua força de trabalho com base em modelos precários e praticamente sem direitos trabalhistas. Na MP ainda constam outras mudanças na CLT, como a alteração nos procedimentos de fiscalização, em linha de fragilizar a atuação da Inspeção do Trabalho; definição de valores menores para multas por infrações; piora das condições de acesso à justiça gratuita; dentre outros ataques.
Trata-se de alterações profundas e estruturais no mercado de trabalho brasileiro que confirmam a tendência dos últimos anos de ofensiva da burguesia brasileira de raízes espoliativas e escravocratas que, apoiada inteiramente pelos seus representantes no Governo Federal e no Congresso, visa sustentar a intensificação da extração de mais-valia absoluta e a superexploração da classe trabalhadora para recuperar sua lucratividade.
David Deccache
David Deccache é Mestre em Economia pela UFF, ativista dos direitos humanos e, atualmente, exerce o cargo de Assessor Econômico da bancada de Deputados Federais do PSOL.