05/12/2015
Há base legal para o impeachment?
'Eu sou opositor radical da política econômica do Governo da Dilma Rousseff. Mas transformar esse descontentamento em impeachment é uma piada de mau gosto'


No Senado ou no Congresso, talvez eu seja o mais duro crítico da política econômica do Governo, uma vez que venho sustentando a existência de erros e de ineficácias há muito anos já.
 
Se o nosso regime fosse o parlamentar, eu estaria trabalhando para tirar trocar o gabinete ministerial, mas nós vivemos em um regime presidencialista e no regime presidencialista esta remoção da autoridade máxima da República só é possível através do impeachment. Mas o impeachment pressupõe a existência de um delito de responsabilidade, pressupõe a existência de um crime. E é sobre isso a que eu quero me referir na tarde de hoje.
 
Constitui princípio elementar do Direito, garantido, inclusive, na Constituição Federal, que não há crime sem lei que o estabeleça. Nos últimos dias a imprensa e alguns Parlamentares têm, de forma contumaz, apontado práticas de crime de responsabilidade fiscal por parte da Presidente da República, entre os quais o descumprimento de metas fiscais.
 
Para se avaliar juridicamente esta informação é necessário que se busque na teoria geral do ordenamento jurídico os possíveis efeitos das leis, quais sejam, entre outros, proibir, obrigar ou permitir.
 
Outro grupo de leis destina apresentar ideias de gestão pública. Trata-se das leis de natureza programática. Crimes são situações descritas em leis destinadas a proibir ou obrigar, com a agravante de imposição de pena de natureza criminal. Ou seja, haver crime não é suficiente para que a lei proíba determinado comportamento, mas é indispensável que esse comportamento receba, do legislador, atribuição de crime para que assim seja tratado.
 
Ao lado dos crimes, caminham ainda as contravenções, como a disponibilização de jogos de azar por particulares – e parece que agora um grupo de Parlamentares do Congresso Nacional quer legalizar o jogo, que é um instrumento de lavagem de dinheiro em todo o globo terrestre, – e os ilícitos não criminais, a exemplo das multas de trânsito. Esses lícitos não criminais decorrem tanto pela violação ativa de leis que proíbam, quanto pela afronta passiva a leis que obrigam, como é o caso do descumprimento, por parte do eleitor, do dever de votar.
 
Para crimes, a sanção é a pena criminal; para os ilícitos, em regra, há sanções administrativas que podem de definir na forma de multas ou de redução ou impedimento de certos direitos. A título de exemplo, quem falta ao dever de votar não tem o direito de obter passaporte.
Essa introdução acima é necessária para que se entenda quão descabida é a atribuição de crime de responsabilidade fiscal à Presidenta da República, no que se refere ao não atingimento de metas fiscais.
 
Se somente há crime, se houve lei que assim o defina, o silogismo mais simplório que se pode elaborar, aplicável ao caso é: se não há lei que caracterize o descumprimento de metas fiscais como crime, não há crime em se realizar tal descumprimento.
 
Resta, portanto, verificar se existe ou não norma nesse sentido. No âmbito da Constituição Federal, somente há um único dispositivo que cita a meta fiscal (o art. 166, § 17), que se limita a determinar a redução da obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares, nos casos em que se vislumbre o não cumprimento da meta de resultado fiscal estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias. E só, é apenas o que existe.
 
Configura-se, portanto, mero texto permissivo de não execução de emendas na hipótese aventada.
 
O conceito de meta fiscal decorre do §1º do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que obriga o Executivo a encaminhar ao Congresso Nacional, junto com o projeto de LDO, o Anexo de Metas Fiscais, em que serão estabelecidas "metas anuais, em valores correntes e constantes, relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário".
 
No §2º do mesmo art. 4º, a Lei de Responsabilidade Fiscal determina, ainda, que aquele Anexo contenha (I) a avaliação do cumprimento das metas relativas ao ano anterior, e (II) um "demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional".
 
Do mesmo modo, a Lei de Responsabilidade Fiscal exige que o projeto de Lei Orçamentária Anual contenha, "em anexo, demonstrativo da compatibilidade da programação dos orçamentos com os objetivos e metas constantes" do Anexo de Metas Fiscais.
 
Alguns outros poucos textos da Lei de Responsabilidade Fiscal utilizam o conceito de Metas Fiscais como parâmetro para alguma norma, mas nunca estabelecendo qualquer obrigatoriedade de cumprimento das metas.
 
Ao lado dessa realidade, o §4º do art. 4 determina que a cada quatro meses haja audiência pública na Comissão Mista de Orçamento, em que o Poder Executivo deverá demonstrar e avaliar o cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre.
 
Esse controle, efetuado pelo Legislativo, é inclusive ressaltado pelo art. 59 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que a ele atribui o dever de fiscalizar – abre aspas: "o cumprimento das normas desta Lei Complementar com ênfase no que se refere ao atingimento das metas estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias".
 
Prevê, ainda, a Lei de Responsabilidade Fiscal que a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício tributário da qual decorra renúncia de receita, bem como a criação de despesas obrigatórias de caráter continuado deverão ser justificadas com demonstrativo de que tais ações não afetarão as metas de resultados fiscais.
 
Esses casos são exemplos de situações em que as metas fiscais são parâmetros para o estabelecimento de efeitos normativos de disposições legais, sem que haja qualquer imposição de cumprimento de tais metas.
 
A Lei de Responsabilidade Fiscal, no entanto, quando de sua aprovação, provou ser norma menos que perfeita, uma vez que criava uma série de obrigações e proibições para cuja violação, ainda que se caracterizasse como ilícito, não havia qualquer caracterização como crime e nem mesmo previsão de qualquer pena, seja de que natureza viesse a ser.
 
Assim é que, ainda no ano de sua publicação, 2000, foi proposto o projeto de lei que deu origem à Lei nº 10.028, de 2000, destinada a alterar o Código Penal, a Lei do Impeachment e a Lei de Crimes de Prefeitos, além de definir as hipóteses que denominou de infração administrativa contra a Lei de Finanças Públicas.
 
Nela, pode-se verificar uma única alusão à matéria de metas fiscais. Em seu art. 5º, II, que determina – abre aspas: "Constitui infração administrativa contra as leis de finanças públicas" – fecha aspas – o ato de – abre as aspas: "propor lei de diretrizes orçamentárias anual que não contenha as metas fiscais na forma da lei".
 
A partir daquela lei de cunho criminal, a prática das condutas nela previstas passou a ser taxada como crimes ou como infração administrativa contra as leis de finanças públicas.
 
A violação das demais práticas ordenadas na Lei de Responsabilidade Fiscal e não previstas na Lei nº 10.028 mantiveram-se, portanto, na categoria de ilícito sem qualquer previsão de sanção, não podendo delas se extrair a ideia de crime ou de infração administrativa.
Especificamente no que se refere às metas fiscais, fica evidente, insofismável, a certeza de que não há qualquer norma que exija seu cumprimento.
 
Não havendo norma, portanto, não há que se atribuir ao descumprimento nem mesmo a qualidade de infração administrativa contra as leis de finanças públicas, nem muito menos de crime.
Quem procura tornar crime uma conduta que nem mesmo é exigida na lei quer se sobrepor ao legislador, desrespeitando o Estado democrático de direito e a representação popular que confere ao Parlamento o poder de legislar.
 
Vocês imaginem que um governador ou a Presidente da República, como meta estabelecida na Lei Orçamentária, digam que pretendem construir um milhão de residências para trabalhadores. Não conseguem fazer isso. Chegam ao limite de 800 mil. É evidente que isso não se constitui um crime. Uma meta é o objetivo que se deseja alcançar. Ou que, por exemplo, no anexo da Lei de Orçamento se estabeleça um limite de inflação de 6%, mas de repente a inflação, por uma série de circunstâncias da economia globalizada, chegue a 8%, 10% ou 15%. Isso, rigorosamente, não se constitui um crime.
 
Faço aqui, para encerrar, a leitura do art. 150.
 
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
II - Instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
 
Isso significa que a Constituição está a exigir tratamento tributário isonômico, por exemplo, aos dividendos de capital de uma grande empresa e de um banco que não são tributados nem no Brasil, nem na Estônia, e que, ao invés de tributar esses dividendos, a organização tributária condene o trabalhador a impostos rigorosamente absurdos. Então, se isso é um crime em relação a uma meta constitucionalmente estabelecida, nós deveríamos ter “impeachmado” todos os governos posteriores à Constituição: Fernando Henrique, José Sarney, Itamar Franco, porque esse princípio, que é uma meta constitucional não foi obedecido.
 
Eu sou opositor radical da política econômica do Governo da Dilma Rousseff, elaborado e conduzido pelo Joaquim Levy. Esse tipo de política levou a Europa à falência, quebrou Portugal, quebrou a Espanha, quebrou a Itália e desgraçou de uma forma recente e terrível a Grécia. Não é um ajuste fiscal – ajuste esse, sem sombra de dúvida, necessário nas circunstâncias do Brasil e do mundo agora –, é um arrocho executado em cima dos trabalhadores e beneficiando, de uma forma insólita e permissiva, o grande capital, os grandes lucros das pessoas que ganham muito.
 
Mas transformar esse descontentamento congressual, esse descontentamento meu em um impeachment, por crime de responsabilidade, é uma piada de mau gosto, é uma jogada política do mais baixo nível possível e conduzida pelas mãos do famoso Eduardo Cunha, sobre o qual eu não vejo necessidade alguma de tecer algum comentário, porque já é sobejamente conhecido pelo Brasil. Agora, que nós precisamos mudar a política econômica do Brasil, eu não tenho dúvida, mas esseimpeachment não é impeachment, porque crime de responsabilidade não existe.
 
Erros, Senador, existem muitos. Existem muitos, e eu estou há anos criticando, desta tribuna, os erros da condução econômica. Inclusive, nos primeiros quatro anos de meu mandato, parece que não fiz outra coisa, a não ser anunciar o que estava por suceder. Nós precisamos, de qualquer forma, mudar a política do arrocho, porque não é política do ajuste, mas o artifício de, numa barganha, numa verdadeira briga de bugio, considerar crime o que crime não é, será uma fase que levará o Congresso Nacional ao ridículo.
 
Pressão, sim, pressão dura contra uma política econômica absolutamente irrazoável, que prejudica o trabalho e prejudica o capital produtivo e que beneficia, às escancaras, os banqueiros, os grandes rentistas e os grandes lucros, em medidas que só acontecem, como já me referi, ao Brasil e à Estônia.

Fonte: cartamaior
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